segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Vergonha


Já não chove àquela hora. Pela janela aberta do último ônibus da noite, chega, às narinas de Osvaldo, o cheiro da terra molhada pela chuva da tarde. Chuva mansa, chuva boa, chuva de lavar telhado; chuva que, sobre as folhas de zinco da fábrica, ensurdecia mais que o matraquear das máquinas. A cabeça pesa-lhe, mas não é sono. Os braços pesam como chumbo, mas não é pelo cansaço da hora extra. A última hora extra, cumprida no silêncio aterrador da velha fábrica, já vazia de mãos e almas. Pesam-lhe a cabeça e os braços com um peso de uma angústia, um medo, uma insegurança, uma dor, uma vergonha. Em casa, os dois filhos pequenos dormem aconchegados à mãe que espera. Não suportaram o sono na espera pelo pai. A casa pobre, tijolos sem reboco, um corpo com veias à mostra, infindável construção. Um lar feito aos poucos, com o pouco das sobras anuais. Hoje, Osvaldo leva dinheiro para casa. Dentro da bolsa de operário, ao lado da marmita vazia, descansa o envelope com o último pagamento. O ônibus, praticamente vazio, já chacoalha pelas ruas esburacadas de seu bairro pobre e excluído das benesses da administração pública. Ao cheiro da terra molhada junta-se o gosto de sal de uma lágrima. Lágrima furtiva, que nunca vem fácil aos olhos de quem tem vergonha. Osvaldo engole o gosto de sal quando se aproxima da sua parada mal iluminada; parada que projeta um trapézio de sombra sobre os buracos alagados da sua rua pobre. Como explicar aos filhos e à mulher? Amanhã ele já não trabalha. Dentro da bolsa de operário, ao lado da marmita vazia, descansa o envelope com o último pagamento. Envelope com um pouco de dinheiro a mais que o costumeiro; o dinheiro dos acertos finais do aviso prévio e o começo da angústia, do medo, da insegurança, da dor e da vergonha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...