Dia desses, durante um almoço de família, minha nora Raquel, perguntou-me
qual seria a expressão latina que mais me cativava. Depois de uma breve
consulta aos escaninhos da alma (e aos da memória, que o meu latim já se vai há
muitos anos), lembrei-me de “Vincit qui se vincit”, algo como: só vence quem vence a si mesmo. O
profeta do Islã, Muhammad, deu a esse brocardo da Filosofia romana uma visão
religiosa, chamando-a de “Jihad”, mal traduzida pelos ocidentais, ao tempo das
cruzadas, como a “guerra santa” que os muçulmanos empreenderiam contra os
infiéis. Mas, Muhammad estabelece duas jihads,
a “Jihad maior” que descreve como uma luta do indivíduo consigo mesmo, pelo
domínio da alma imortal, pela sua melhoria como ente humano fiel a Deus; e a
outra, a “Jihad menor”, que seria o esforço para levar o Islã ao mundo inteiro.
Prefiro a visão desta jihad maior, que se enquadra mais no conceito latino, de
uma luta sem quartel, que o homem deve empreender para vencer suas más
tendências, conhecendo a si mesmo, reforçando-se em suas virtudes e
combatendo em si os seus vícios morais, e isso mesmo que não tenha nenhum
vínculo religioso, uma vez que, ainda que o homem não acredite em Deus, sente
que melhorar sempre mais como indivíduo, acaba por “contaminar” a sociedade com
a gentileza, a educação, a urbanidade, a civilidade, a misericórdia, a
compaixão. Outras vezes, essa luta deve ser travada contra a apatia, contra o
medo, contra a mediocridade, contra o inexorável destino que é a morte, venha
ela como vier, sem receios e com altivez. Eis a grande Empreitada do homem sobre
a terra, reconhecer em si o seu maior inimigo, viciado, pequeno, egoísta.
Avançar sempre, a cada dia, sobre a ignorância, a superstição, o preconceito, a
ambição que, teimosamente, habitam em nós. Começando em nós, transformando a
sabedoria e o conhecimento em ação positiva, haveremos de mudar para melhor a
sociedade e o mundo. Vincit qui se vincit,
vencer a nós mesmos. Que empreitada!
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Então, eu conto!
Sonho de infância.
Julinho
é um menino mirrado, tem oito anos, mas isso ninguém diz por que ele aparenta só
ter uns cinco. Ele é assim mesmo, amarelado, raquítico, desnutrido, de
crescimento ruim para a idade; o que se percebe, no meio do rosto esquálido, é
este par de olhos vivos, matreiros, como os olhinhos de um rato. Sua
inteligência é curta, chega quase à idiotia, mas é esperto, isso sim, como
qualquer bicho, já é ágil nas manhas da sobrevivência. Brinca no meio da rua,
quase sempre está sozinho; pés descalços, roupa imunda, cara suja, olhos
remelentos, nariz sempre fungando; dá uma corridinha e puxa as calças largas
para a cintura. É invisível para a maioria dos que passam, por isso é uma
criança triste e solitária.
Mora
no meio do beco sórdido, sempre sujo, cheio de lixo, num barraco de madeira de
um cômodo só. Cozinha, sala e quarto misturados em promíscua confusão de
mobília e trapos que se espalham pelo chão ou pendurados em pregos pelas
paredes. O banheiro é uma casinha de madeira nos fundos do barraco, onde as
aranhas e as baratas moram. Ali vive com a mãe e outros três irmãos: uma
menininha de cinco anos, outro de três e outro que ainda chupa o seio minguado.
Do pai não sabe nada, nem ao menos quem seja. Dormem todos na mesma cama desde
que o atual companheiro da mãe foi levado pela PM; isso foi naquela noite de
gritaria e confusão, a polícia batia, o homem gemia, a mãe gritava; levaram o
homem no carro com as luzes girantes, a mãe chorou baixinho olhando a porta do
barraco que ficou escancarada, depois, silêncio de novo. Antes disso acontecer,
só o homem dormia na cama com a mulher; elas, as crianças, dormiam no chão,
sobre uns panos velhos improvisados que eram seus colchões. Dormir no chão era
frio, era duro, doíam-lhe as costas, e ele tinha medo das baratas. Não gostava
daquele homem. Ele batia na mãe, vivia bêbado; e quando a mãe não estava, o
homem botava-o para fora e ficava só com a irmã menor trancado em casa. Julinho colava
o ouvido na parede do barraco e escutava o homem gemendo e fungando, até a
irmãzinha começar a chorar. Além de tudo, o pior, aquele homem roubava seu
lugar quente na cama da mãe.
Julinho
não estuda, não faz nada, apenas respira e anda. Sente uma fome constante e seu
sonho de infância era dormir num colchão só seu. A mãe manda-o para rua de
manhã cedo e diz que só volte à tardinha; e que tenha comido pela rua, porque
em casa não há o que sustente a todos. Ele nunca se aventura muito longe de seu
beco, perambula pelas redondezas fungando e puxando as calças. Sabe que alguém
vai lhe dar o que comer, não sabe quem, não sabe onde; mas, como um rato,
instintivamente, sabe que vai comer. O lixo pode conter maravilhas gustativas
para quem nada tem. Anda por ali sozinho, ninguém se importa com ele, e ele também
não faz importância da solidão; pelo menos, não terá de dividir com ninguém a
comida que encontrar. Corre solto, livre pela rua, falando alto, alheio as
pessoas e ao mundo a seu redor; corre montado num galho seco que é seu cavalo
negro, de espada na mão, assim como o mocinho mascarado que viu num cartaz
pregado na porta daquilo que ele chama: “uma loja de filmes”. As outras
crianças que encontra não lhe interessam, não faz caso delas. Nenhuma delas
sequer olha para ele, nenhuma jamais vai querer brincar com ele.
Volta
para casa e já é quase noite. No meio do beco, em frente ao barraco, está
parada uma Kombi branca com alguma coisa escrita na porta que ele mesmo não
sabe ler. Dentro do barraco há um soldado PM e outras pessoas. A mãe está
chorando, sentada a um canto, olhos vidrados, catatônica, deserdada da sorte,
desencantada com a sua miséria. Julinho, sem rir, acha graça na cara apatetada
da mãe. Uma das moças vem falar com ele, diz que é de um tal “Conselho Tutelar”
e que veio buscar a ele e aos irmãos para morarem numa outra casa, mas que a
mãe não pode ir junto, que eles ficarão todos bem, que irão tomar banho e comer
todos os dias. Julinho olha para a mãe e para o barraco imundo, volta-se e
pergunta à moça se vai poder também dormir num colchão só seu. “Vai tomar banho,
trocar de roupa, brincar, jantar e dormir numa cama bem limpinha”.
Julinho
agora vai feliz dentro da Kombi, já não pensa mais na mãe que ficara chorando
sozinha no barraco sem luz. Está aliviado, sorri satisfeito, até que enfim, vai
poder dormir numa cama com colchão. Longe das baratas. Um colchão só seu,... Só
seu!
*
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