terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Pequena exortação à vida

Anda, minha gente, desperta! Olha ali, é a vida passando! Os sabiás já enchem os dias, desde cedo, na madrugada, e o verão ainda nem é. Meu coração tem a pressa e a necessidade de preencher os vazios, tem a ânsia de saltar para frente; talvez o corpo, já ferido e doloroso, não responda como deve; ou talvez saltar ficou para trás com o menino que fui. Mas, a alma, essa sim, ainda quer cantar com os sabiás, e eu nem sabia. Olha, gente, tudo é irreal, até a angústia é impermanente. A esperança está dispersa. A única verdade é juntá-la. A expectativa por tudo que é bom e simples, por tudo que é belo. Os netos e seus avós; crianças rindo e brincando, todas iguais, sem classe social; cheirinho de chiclete e livro novo; a saudade do amigo distante; o romance que se quer lançar e se torce para que dê certo; a chuva mansa que refresca os dias; ouvir a brisa boa que refresca as tardes penteando a copa das árvores; ver quem lança mais longe, às cusparadas, os caroços de melancia; escutar a Elis e o Tom, “... é pau é pedra, é o fim do caminho...”; mergulhar na alegria do George, “Here comes the Sun...”, “My sweet lord, aleluia!”; dividir uma garrafa de vinho com quem se ama, numa mesa de comida simples; conseguir o acorde certo no instrumento que se toca; trazer em si a alma inquieta do filósofo; soltar peão com o neto..., ufa! Mas, são tantos desencontros. Alguma coisa está fora da ordem para a qual fomos criados. Como nos mutilamos, Deus, ao longo da vida. E nos fechamos e não vemos que a vida passa.
            A dimensão de tudo agora é virtual. A culpa de tudo que dá errado é do “sistema”, um ser amorfo, sem rosto, estúpido, pois erra sempre e em todos os lugares. Ninguém mais é responsável por seus erros, continuamos todos adolescentes. Os abraços são as palavras escritas, sem convicção, na rede social. Mas, o beijo e o cheiro do outro continuam essenciais. Estamos ficando cegos e surdos apressados, com os fones do celular enfiados nos ouvidos. Não queremos, mas nos embrutecemos; não queremos, mas estamos virando coisas, números; espremidos nas ruas cheias, já não vemos a beleza que passa, as crianças que choram, os velhos perdidos, vagos, nem vemos a indigência sincera que precisa. Gel no cabelo, paletó e gravata, podemos fazer tudo sozinhos. Arrogantes, orgulhosos, doentes da alma que aos poucos se perde, nos arrastamos para a indiferença, para o insensível. Desvalorizamos o humano e queremos mais “ter” do que “ser”. Quando a tristeza bater, com o nome de “depressão”, tomara não seja tarde para buscar qualquer coisa que faça sentido na vida.
            Anda, minha gente, desperta! “A vida é mais que o alimento e o vestuário. Olhai as aves do céu; elas não semeiam, nem colhem, contudo Deus as sustenta. Vós não sois mais que as aves? Não vos inquieteis sobre o vosso vestuário. Olhai os lírios do campo, eles não tecem e não fiam, no entanto, vos afirmo, que nem Salomão, em toda a sua glória, vestiu-se como um deles. Se Deus vestiu assim a erva do campo, o que não fará por vós, homens de pouca fé?” O verão ainda não é, mas as crianças e os pássaros já o sentem, vivendo a simplicidade. Sem desesperança, sem mentiras.
            Pensem nisso.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Vergonha

                               
(Mais uma palhinha de "A Empreitada")

                                Já não chove àquela hora. Pela janela aberta do último ônibus da noite, chega, às narinas de Osvaldo, o cheiro da terra molhada pela chuva da tarde. Chuva mansa, chuva boa, chuva de lavar telhado; chuva que, durante a tarde, caindo sobre as folhas de zinco da fábrica, ensurdeceu mais que o matraquear das máquinas. A cabeça pesa-lhe agora, mas não é sono. Sente peso no estômago e náusea, mas não lhe vem o gosto amargo da comida azeda da marmita requentada no seu almoço de operário. Os braços pesam como chumbo, mas não é pelo cansaço da hora extra. Aquela última hora extra, cumprida no silêncio aterrador da velha fábrica, já vazia de mãos e almas. Mas, suas mãos, naquela última hora, produziram a última peça e, só então, deixou esvaziar a alma. Pesam-lhe a cabeça e os braços com um peso de uma angústia, um medo, uma insegurança, uma dor, uma vergonha. Em casa, os dois filhos pequenos dormem aconchegados à mãe que espera. Não suportaram o sono na espera pelo pai. A casa pobre, tijolos sem reboco, um corpo com veias à mostra, infindável construção. Um lar feito aos poucos, com o pouco das sobras anuais. Hoje, Osvaldo leva dinheiro para casa. Dentro da bolsa de operário, ao lado da marmita vazia, descansa o envelope com o último pagamento. O ônibus, praticamente vazio, já chacoalha pelas ruas esburacadas de seu bairro, gente pobre e excluída das benesses da administração pública. Ao cheiro da terra molhada se junta o gosto de sal de uma lágrima. Lágrima furtiva, que nunca vem fácil aos olhos de quem tem vergonha. Osvaldo engole o gosto de sal quando se aproxima da sua parada mal iluminada; parada que projeta um trapézio de sombra sobre os buracos alagados da sua rua pobre. Como explicar aos filhos e à mulher? Amanhã ele já não trabalha mais. Dentro da bolsa de operário, ao lado da marmita vazia, descansa o envelope com o último pagamento. Envelope com um pouco de dinheiro a mais que o costumeiro; o dinheiro dos acertos finais do aviso prévio e o começo da angústia, do medo, da insegurança, da dor e da vergonha do desemprego.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Clipping - Jornal ABC - 14/07/2013

O recorte abaixo é de publicação do Jornal ABC do Rio Grande do Sul, de domingo, 14/07/2013, na coluna Sala de Leitura, de Jane Regina Mathias.


A Empreitada - (Ed. do autor, 123 p., 25 reais) Gerson Colombo. O livro reúne doze contos cuja linha mestra é "a de uma luta sem quartel, que o homem deve empreender para vencer suas más tendências, conhecendo a si mesmo, reforçando-se em suas  virtudes e combatendo em si os próprios vícios morais", conforme ressalta o autor na apresentação da obra. Os contos falam sobre luz e treva, a violência de supostos humanos sobre seres indefesos, a fraternidade em xeque, a velhice, os absurdos da convivência, o trabalho mal remunerado, a infância marginalizada, a sabedoria da natureza, o desgoverno oficial. Vergonha é um dos contos mais curtos, mas nem por isso deixa de ser um dos mais profundos. São palavras escassas, bem escolhidas, para relatar uma realidade cruel: a dor infinita de um pai de família que perde o emprego. Em Cenas Curtas Colombo fala sobre os absurdos encontros e diálogos, entre pessoas que, lamentavelmente, são bem reais. São situações estranhas a que todos se sujeitam num mundo como o atual, no qual ninguém parece querer ouvir ou entender o que o outro diz.


sexta-feira, 21 de junho de 2013

Chegou a Primavera, estão voltando as flores.





       Acabou-se a letargia do sono em “berço esplêndido”. O Gigante acordou é o que dizem as ruas. E ao que parece para uma longa vigília em favor do bem comum. Quem tiver ouvidos de ouvir que ouça. A minha geração tremia, de raiva e não de medo, nos tempos da repressão, do abuso de poder, da tortura, do “sabe com quem está falando?”, da inflação mascarada, do uso da Previdência para construir pontes e estradas, da corrupção abafada pela censura, das eleições indiretas. As ruas, então, se encheram como agora. “Diretas já!”. Voltou o poder do povo e para o povo. Mas, o povo foi traído novamente. De volta às ruas, então! Agora de caras pintadas: “Fora Collor!”, e o presidente caiu. E os exilados, presos e torturados chegaram ao poder. “Agora a coisa vai! São políticos de boa cepa!”. Qual o quê... Agravaram-se a corrupção, a impunidade, a violência urbana, uma exorbitância de impostos sem o retorno devido, a Educação em petição de miséria, a troca de apoio no Congresso por dinheiro, condenados julgados gozando de liberdade, o caos na saúde pública, a delinquência juvenil impune e sem controle. Fica o gosto amargo de saber que os nossos eleitos não nos representam. E as obras para a Copa? A Grêmio Arena, particular, sem dinheiro público, erguida do zero, ficou em quatrocentos milhões; a “reforma” do Maracanã, obra pública, custou um bilhão de reais. A senhora “presidente”, em Roma, hospedou-se em hotel de luxo, com sua comitiva, ao custo de dezenas de milhares de reais, desprezando nossa Embaixada e a inteligência do povo. Temos mais? Ah, tem... Tem o mensalão, com a “eminência parda” do Lula, inexplicavelmente fora do processo, tem o Renan, tem o Feliciano com a “cura gay” (Meu Deus!), tem a Hidrelétrica de Belo Monte, temos os foros “privilegiados”. Temos desigualdade, enfim! Mas, a rua não tem estatutos. O simples aumento nas passagens de ônibus em Porto Alegre serviu de estopim para incendiar o Brasil. O povo, nas ruas, clama por consertar qualquer coisa que entenda injusta, rejeitando Partidos, tanto faz situação ou oposição (que parece não haver), e que não são bem vindos. A exemplo das primaveras espalhadas pelo mundo, desde o “occupy wall street” passando pelo mundo árabe e pela Europa, a nossa primavera parece ter chegado no começo do Inverno. Ninguém, em sã consciência, quer o vandalismo, que seja reprimido com dureza. Mas, a manifestação pacífica...? Deixem o povo nas ruas! A classe política, se tiver ouvidos de ouvir, que faça seu trabalho decentemente. Vejam! Estão voltando as flores. 

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Lançamento A Empreitada

Foi um grande prazer receber amigos leitores e leitores amigos no lançamento de "A Empreitada". Aconteceu no BooKafé da 29ª Feira do Livro de Canoas, em 11 de junho. Obrigado, um grande abraço a todos!
Ah! Aproveitem a leitura! Quem sabe, a partir daí, não iniciamos todos a nossa empreitada?




















terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A Empreitada


                       Dia desses, durante um almoço de família, minha nora Raquel, perguntou-me qual seria a expressão latina que mais me cativava. Depois de uma breve consulta aos escaninhos da alma (e aos da memória, que o meu latim já se vai há muitos anos), lembrei-me de “Vincit qui se vincit”, algo como: só vence quem vence a si mesmo. O profeta do Islã, Muhammad, deu a esse brocardo da Filosofia romana uma visão religiosa, chamando-a de “Jihad”, mal traduzida pelos ocidentais, ao tempo das cruzadas, como a “guerra santa” que os muçulmanos empreenderiam contra os infiéis. Mas, Muhammad estabelece duas jihads, a “Jihad maior” que descreve como uma luta do indivíduo consigo mesmo, pelo domínio da alma imortal, pela sua melhoria como ente humano fiel a Deus; e a outra, a “Jihad menor”, que seria o esforço para levar o Islã ao mundo inteiro. Prefiro a visão desta jihad maior, que se enquadra mais no conceito latino, de uma luta sem quartel, que o homem deve empreender para vencer suas más tendências, conhecendo a si mesmo, reforçando-se em suas virtudes e combatendo em si os seus vícios morais, e isso mesmo que não tenha nenhum vínculo religioso, uma vez que, ainda que o homem não acredite em Deus, sente que melhorar sempre mais como indivíduo, acaba por “contaminar” a sociedade com a gentileza, a educação, a urbanidade, a civilidade, a misericórdia, a compaixão. Outras vezes, essa luta deve ser travada contra a apatia, contra o medo, contra a mediocridade, contra o inexorável destino que é a morte, venha ela como vier, sem receios e com altivez. Eis a grande Empreitada do homem sobre a terra, reconhecer em si o seu maior inimigo, viciado, pequeno, egoísta. Avançar sempre, a cada dia, sobre a ignorância, a superstição, o preconceito, a ambição que, teimosamente, habitam em nós. Começando em nós, transformando a sabedoria e o conhecimento em ação positiva, haveremos de mudar para melhor a sociedade e o mundo. Vincit qui se vincit, vencer a nós mesmos. Que empreitada!

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Então, eu conto!


Sonho de infância.


            Julinho é um menino mirrado, tem oito anos, mas isso ninguém diz por que ele aparenta só ter uns cinco. Ele é assim mesmo, amarelado, raquítico, desnutrido, de crescimento ruim para a idade; o que se percebe, no meio do rosto esquálido, é este par de olhos vivos, matreiros, como os olhinhos de um rato. Sua inteligência é curta, chega quase à idiotia, mas é esperto, isso sim, como qualquer bicho, já é ágil nas manhas da sobrevivência. Brinca no meio da rua, quase sempre está sozinho; pés descalços, roupa imunda, cara suja, olhos remelentos, nariz sempre fungando; dá uma corridinha e puxa as calças largas para a cintura. É invisível para a maioria dos que passam, por isso é uma criança triste e solitária.
            Mora no meio do beco sórdido, sempre sujo, cheio de lixo, num barraco de madeira de um cômodo só. Cozinha, sala e quarto misturados em promíscua confusão de mobília e trapos que se espalham pelo chão ou pendurados em pregos pelas paredes. O banheiro é uma casinha de madeira nos fundos do barraco, onde as aranhas e as baratas moram. Ali vive com a mãe e outros três irmãos: uma menininha de cinco anos, outro de três e outro que ainda chupa o seio minguado. Do pai não sabe nada, nem ao menos quem seja. Dormem todos na mesma cama desde que o atual companheiro da mãe foi levado pela PM; isso foi naquela noite de gritaria e confusão, a polícia batia, o homem gemia, a mãe gritava; levaram o homem no carro com as luzes girantes, a mãe chorou baixinho olhando a porta do barraco que ficou escancarada, depois, silêncio de novo. Antes disso acontecer, só o homem dormia na cama com a mulher; elas, as crianças, dormiam no chão, sobre uns panos velhos improvisados que eram seus colchões. Dormir no chão era frio, era duro, doíam-lhe as costas, e ele tinha medo das baratas. Não gostava daquele homem. Ele batia na mãe, vivia bêbado; e quando a mãe não estava, o homem botava-o para fora e ficava só com a irmã menor trancado em casa. Julinho colava o ouvido na parede do barraco e escutava o homem gemendo e fungando, até a irmãzinha começar a chorar. Além de tudo, o pior, aquele homem roubava seu lugar quente na cama da mãe.
            Julinho não estuda, não faz nada, apenas respira e anda. Sente uma fome constante e seu sonho de infância era dormir num colchão só seu. A mãe manda-o para rua de manhã cedo e diz que só volte à tardinha; e que tenha comido pela rua, porque em casa não há o que sustente a todos. Ele nunca se aventura muito longe de seu beco, perambula pelas redondezas fungando e puxando as calças. Sabe que alguém vai lhe dar o que comer, não sabe quem, não sabe onde; mas, como um rato, instintivamente, sabe que vai comer. O lixo pode conter maravilhas gustativas para quem nada tem. Anda por ali sozinho, ninguém se importa com ele, e ele também não faz importância da solidão; pelo menos, não terá de dividir com ninguém a comida que encontrar. Corre solto, livre pela rua, falando alto, alheio as pessoas e ao mundo a seu redor; corre montado num galho seco que é seu cavalo negro, de espada na mão, assim como o mocinho mascarado que viu num cartaz pregado na porta daquilo que ele chama: “uma loja de filmes”. As outras crianças que encontra não lhe interessam, não faz caso delas. Nenhuma delas sequer olha para ele, nenhuma jamais vai querer brincar com ele.
            Volta para casa e já é quase noite. No meio do beco, em frente ao barraco, está parada uma Kombi branca com alguma coisa escrita na porta que ele mesmo não sabe ler. Dentro do barraco há um soldado PM e outras pessoas. A mãe está chorando, sentada a um canto, olhos vidrados, catatônica, deserdada da sorte, desencantada com a sua miséria. Julinho, sem rir, acha graça na cara apatetada da mãe. Uma das moças vem falar com ele, diz que é de um tal “Conselho Tutelar” e que veio buscar a ele e aos irmãos para morarem numa outra casa, mas que a mãe não pode ir junto, que eles ficarão todos bem, que irão tomar banho e comer todos os dias. Julinho olha para a mãe e para o barraco imundo, volta-se e pergunta à moça se vai poder também dormir num colchão só seu. “Vai tomar banho, trocar de roupa, brincar, jantar e dormir numa cama bem limpinha”.
            Julinho agora vai feliz dentro da Kombi, já não pensa mais na mãe que ficara chorando sozinha no barraco sem luz. Está aliviado, sorri satisfeito, até que enfim, vai poder dormir numa cama com colchão. Longe das baratas. Um colchão só seu,... Só seu!



*


LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...