quinta-feira, 29 de novembro de 2007

O lobo do homem.




O ser humano é o mais selvagem e cruel dos animais que se arrastam sobre a Terra. Insatisfeito e incapaz com sua própria miséria, diverte-se, compraz-se com a miséria dos seus semelhantes; e, se possível, conduz a quem puder para dores maiores. Sem piedade, sem misericórdia, sem perdão. O homem é sempre o lobo do homem.
Terça-feira, 27 de novembro, final do dia, o sol agoniza por detrás da Igreja Matriz. No centro da cidade, a Rua Victor Barreto está intransitável, carros da polícia e do Corpo de Bombeiros ocupam a via. No alto dos sete andares de um prédio, em pé sobre o parapeito, um jovem de uns vinte e cinco anos parece perdido, vago, mergulhado sabe-se lá em que dores. Não aceita que ninguém dele se aproxime e lá permanece por mais de doze horas. Está drogado? Quer suicidar-se? Tem problemas mentais? Isso agora não vem ao caso, o rapaz foi resgatado pela manhã da quarta-feira. O apartamento, logo abaixo dele, fez-se posto de comando para o resgate. Lá estavam os bravos bombeiros carentes de apoio material, os familiares, amigos e pessoas estranhas, mas, de boa vontade, prontas a socorrer. Porém, há uns cinqüenta metros dali, sobre a passarela da estação do metrô, uma pequena multidão se comprimia; pode-se dizer que era uma malta que exultava ou uma matilha que aguardava saboreando o final com a desgraça que se anunciava. E gritavam para que o jovem se arrojasse, que saísse voando dali.
Artigo 122 do Código Penal: Instigação ou auxílio a suicídio. Pena: reclusão, de dois a seis anos. Mas, para aquelas pessoas, a pena legal não significa nada, por que moralmente estão mortas... ou ainda não nasceram; ainda são os lobos que se deliciam com o sangue de outros homens. Os homens e mulheres do apartamento de baixo dão-nos a esperança de que este mundo vai conhecer tempos melhores. Mas, os que se saciavam com a desgraça alheia na passarela dão-nos a triste perspectiva de que esses tempos melhores ainda estão muito longe de nós. Infelizmente.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Vergonha


Já não chove àquela hora. Pela janela aberta do último ônibus da noite, chega, às narinas de Osvaldo, o cheiro da terra molhada pela chuva da tarde. Chuva mansa, chuva boa, chuva de lavar telhado; chuva que, sobre as folhas de zinco da fábrica, ensurdecia mais que o matraquear das máquinas. A cabeça pesa-lhe, mas não é sono. Os braços pesam como chumbo, mas não é pelo cansaço da hora extra. A última hora extra, cumprida no silêncio aterrador da velha fábrica, já vazia de mãos e almas. Pesam-lhe a cabeça e os braços com um peso de uma angústia, um medo, uma insegurança, uma dor, uma vergonha. Em casa, os dois filhos pequenos dormem aconchegados à mãe que espera. Não suportaram o sono na espera pelo pai. A casa pobre, tijolos sem reboco, um corpo com veias à mostra, infindável construção. Um lar feito aos poucos, com o pouco das sobras anuais. Hoje, Osvaldo leva dinheiro para casa. Dentro da bolsa de operário, ao lado da marmita vazia, descansa o envelope com o último pagamento. O ônibus, praticamente vazio, já chacoalha pelas ruas esburacadas de seu bairro pobre e excluído das benesses da administração pública. Ao cheiro da terra molhada junta-se o gosto de sal de uma lágrima. Lágrima furtiva, que nunca vem fácil aos olhos de quem tem vergonha. Osvaldo engole o gosto de sal quando se aproxima da sua parada mal iluminada; parada que projeta um trapézio de sombra sobre os buracos alagados da sua rua pobre. Como explicar aos filhos e à mulher? Amanhã ele já não trabalha. Dentro da bolsa de operário, ao lado da marmita vazia, descansa o envelope com o último pagamento. Envelope com um pouco de dinheiro a mais que o costumeiro; o dinheiro dos acertos finais do aviso prévio e o começo da angústia, do medo, da insegurança, da dor e da vergonha.

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