terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Então, eu conto!


Sonho de infância.


            Julinho é um menino mirrado, tem oito anos, mas isso ninguém diz por que ele aparenta só ter uns cinco. Ele é assim mesmo, amarelado, raquítico, desnutrido, de crescimento ruim para a idade; o que se percebe, no meio do rosto esquálido, é este par de olhos vivos, matreiros, como os olhinhos de um rato. Sua inteligência é curta, chega quase à idiotia, mas é esperto, isso sim, como qualquer bicho, já é ágil nas manhas da sobrevivência. Brinca no meio da rua, quase sempre está sozinho; pés descalços, roupa imunda, cara suja, olhos remelentos, nariz sempre fungando; dá uma corridinha e puxa as calças largas para a cintura. É invisível para a maioria dos que passam, por isso é uma criança triste e solitária.
            Mora no meio do beco sórdido, sempre sujo, cheio de lixo, num barraco de madeira de um cômodo só. Cozinha, sala e quarto misturados em promíscua confusão de mobília e trapos que se espalham pelo chão ou pendurados em pregos pelas paredes. O banheiro é uma casinha de madeira nos fundos do barraco, onde as aranhas e as baratas moram. Ali vive com a mãe e outros três irmãos: uma menininha de cinco anos, outro de três e outro que ainda chupa o seio minguado. Do pai não sabe nada, nem ao menos quem seja. Dormem todos na mesma cama desde que o atual companheiro da mãe foi levado pela PM; isso foi naquela noite de gritaria e confusão, a polícia batia, o homem gemia, a mãe gritava; levaram o homem no carro com as luzes girantes, a mãe chorou baixinho olhando a porta do barraco que ficou escancarada, depois, silêncio de novo. Antes disso acontecer, só o homem dormia na cama com a mulher; elas, as crianças, dormiam no chão, sobre uns panos velhos improvisados que eram seus colchões. Dormir no chão era frio, era duro, doíam-lhe as costas, e ele tinha medo das baratas. Não gostava daquele homem. Ele batia na mãe, vivia bêbado; e quando a mãe não estava, o homem botava-o para fora e ficava só com a irmã menor trancado em casa. Julinho colava o ouvido na parede do barraco e escutava o homem gemendo e fungando, até a irmãzinha começar a chorar. Além de tudo, o pior, aquele homem roubava seu lugar quente na cama da mãe.
            Julinho não estuda, não faz nada, apenas respira e anda. Sente uma fome constante e seu sonho de infância era dormir num colchão só seu. A mãe manda-o para rua de manhã cedo e diz que só volte à tardinha; e que tenha comido pela rua, porque em casa não há o que sustente a todos. Ele nunca se aventura muito longe de seu beco, perambula pelas redondezas fungando e puxando as calças. Sabe que alguém vai lhe dar o que comer, não sabe quem, não sabe onde; mas, como um rato, instintivamente, sabe que vai comer. O lixo pode conter maravilhas gustativas para quem nada tem. Anda por ali sozinho, ninguém se importa com ele, e ele também não faz importância da solidão; pelo menos, não terá de dividir com ninguém a comida que encontrar. Corre solto, livre pela rua, falando alto, alheio as pessoas e ao mundo a seu redor; corre montado num galho seco que é seu cavalo negro, de espada na mão, assim como o mocinho mascarado que viu num cartaz pregado na porta daquilo que ele chama: “uma loja de filmes”. As outras crianças que encontra não lhe interessam, não faz caso delas. Nenhuma delas sequer olha para ele, nenhuma jamais vai querer brincar com ele.
            Volta para casa e já é quase noite. No meio do beco, em frente ao barraco, está parada uma Kombi branca com alguma coisa escrita na porta que ele mesmo não sabe ler. Dentro do barraco há um soldado PM e outras pessoas. A mãe está chorando, sentada a um canto, olhos vidrados, catatônica, deserdada da sorte, desencantada com a sua miséria. Julinho, sem rir, acha graça na cara apatetada da mãe. Uma das moças vem falar com ele, diz que é de um tal “Conselho Tutelar” e que veio buscar a ele e aos irmãos para morarem numa outra casa, mas que a mãe não pode ir junto, que eles ficarão todos bem, que irão tomar banho e comer todos os dias. Julinho olha para a mãe e para o barraco imundo, volta-se e pergunta à moça se vai poder também dormir num colchão só seu. “Vai tomar banho, trocar de roupa, brincar, jantar e dormir numa cama bem limpinha”.
            Julinho agora vai feliz dentro da Kombi, já não pensa mais na mãe que ficara chorando sozinha no barraco sem luz. Está aliviado, sorri satisfeito, até que enfim, vai poder dormir numa cama com colchão. Longe das baratas. Um colchão só seu,... Só seu!



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