sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Triste comédia urbana.


Aconteceu num dia de um dezembro quente e úmido, por volta das sete da noite – que, como se sabe, para dezembro ainda é hora do solaço da tarde - o trânsito, o caos de sempre – já que nunca importa a estação do ano é sempre um caos mesmo – Pois, numa rua lateral a uma rodovia, o sujeito Alfa – vamos chamar nossas personagens assim por que são estatísticas e estatísticas não têm nome - dirigia agressivamente o seu bólido entre outros bólides, como senhor absoluto da razão e do direito, ostentando a sua masculinidade através daquele símbolo fálico movido à gasolina.
As fachadas das lojas passavam por ele rapidamente com seus enfeites de natal e seus papais Noel, enchendo ainda mais os corações com aquele espírito natalino cheio de irritação com todos, angústia pelos presentes obrigatórios e ainda não comprados e o cansaço do fim de ano chegando ao limite do aceitável. Em um acesso da rodovia para a rua lateral, a vida do sujeito Alfa encontrou-se com a vida do sujeito Beta. Este saindo da estrada – diga-se que em altíssima velocidade também – atravessou-se no caminho do bólido de Alfa, fechando-lhe a passagem; e seguindo em frente sem tomar conhecimento do que se passou. O estresse imediato fez com que o nível de adrenalina de Alfa subisse assustadoramente e, como resposta instintiva, vem uma freada brusca, provocando o atravessamento do carro na via, lançando tudo que estava no banco traseiro sobre o motorista. Some-se a isso tudo as buzinas e os palavrões natalinos vindos dos outros carros, o resultado é um acesso de fúria de Alfa que, mesmo à distância, por entre outros automóveis, passa a perseguir Beta que ele, Alfa, entendia ser então um fugitivo, depois da injustificada agressão ao seu legítimo direito de ser o único a poder cometer imprudências. Quando consegue alcançá-lo, estão fora do tráfego intenso, longe da rodovia em meio a um bairro de ruas tranqüilas, bucólico, de trânsito pacato, de sossegadas casas de classe média, onde Beta, tendo deixado o carro na garagem, já está na sala de estar de sua casa.
Feito o preâmbulo da nossa desgraça, a triste comédia urbana, em um único ato, começa a se desenrolar quando a campainha toca. Beta abre a porta pela metade. Parado na varanda, de olhos injetados de ódio, está o sujeito Alfa, agora sem a armadura motorizada. “Pois não?”, “Como assim ‘pois não’?”, “Desculpe..., não entendi! Foi o senhor que me bateu à porta, deseja o quê?”, “Você não viu o que fez, rapaz?”, “Fez o quê? Quem é o senhor, afinal?”, “ Ah, essa é muito boa! Você jogou seu carro em cima do meu, rapaz. Quase provocou um acidente sério”, “ Ah, quase..., só quase? Quando e aonde foi isso?”, “Ora não se faça de besta, rapaz.”, “Olha aqui, para começar, cidadão, eu não sou rapaz e besta é sua mãe. Além do mais, não sei do que o senhor está falando.”, “Ah, não sabe é? Pois vou refrescar a sua memória.” Dito isso, Alfa tirou do cinto um revólver calibre .38, outro símbolo de sua masculinidade afrontada; e apontou-o para Beta, este, ao contrário do que esperava Alfa, não se comoveu, olhou com frieza para a arma, olhou dentro dos olhos de Alfa, como a investigar a alma do intruso; e, súbito, abriu o restante da porta, apontou com o dedo para o próprio peito. “Atira aqui, ó!”, “???”, “Atira logo, cara! É só puxar o gatilho. Que foi? Perdeu a valentia?”Alfa arregalava e piscava os olhos. A reação de Beta esfriou-lhe o sangue e a adrenalina sumiu de vez. Um leve tremor saiu-lhe dos dedos e refletiu-se no cano da arma. Lembrou-se da mulher e dos filhos que o esperavam em casa, lembrou-se dos presentes que ainda não comprara. “Atira logo, seu corno!” – gritou-lhe o outro, tirando-o de seu devaneio. O cano da arma agora oscilava ostensivamente. “Não vai atirar, machão filho da puta?” Beta, então, lentamente pegou a arma pelo cano e tomou-a das mãos de Alfa. “Isso aqui, ó, só dispara na mão de homem.” Alfa cravou os olhos no assoalho, estava envergonhado, sentia-se nu fora do carro, frágil e exposto; e, afinal entendeu, era apenas um homem comum. Beta então deu três passos atrás e amaciou o tom da voz. “Tá bem, tá bem, cara. Já passou! Entra um pouco. Vamos conversar.” Inocentemente Alfa cruzou o vão da porta e, já no interior da sala, recebeu um tiro certeiro no coração.
O sujeito Beta responde, em liberdade, há dois anos, um processo por homicídio simples, tendo alegado legítima defesa contra agressão injusta e invasão de domicílio.

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