terça-feira, 29 de abril de 2008

Sonho de infância.


Julinho tem oito anos, mas aparenta ter cinco. Ele é amarelado, raquítico, de crescimento ruim para a idade; ainda assim, no meio do rosto esquálido, tem um par de olhos vivos, espertos, como os olhos de um rato, ágil nas manhas da sobrevivência. Brinca no meio da rua, quase sempre está sozinho; pés descalços, roupa imunda, cara suja, olhos remelentos, nariz sempre fungando; dá uma corridinha e puxa as calças largas para a cintura. É uma criança triste e solitária.
Mora no meio do beco sórdido, num barraco de madeira de um cômodo só. Mora com a mãe e outros três irmãos: uma menininha de cinco anos, outro de três e outro que ainda chupa o seio mirrado. Dormem todos na mesma cama desde que o companheiro atual da mãe foi levado pela PM. Antes disso, só o homem dormia na cama com a mulher; eles, as crianças, dormiam no chão, sobre uns trapos improvisados que eram seus colchões. Dormir no chão era frio, duro e ele tinha medo das baratas. Não gostava daquele homem. Ele batia na mãe, vivia bêbado; e quando a mãe não estava, botava-o para fora e ficava só com a irmã menor trancado em casa. Julinho colava o ouvido na parede do barraco e escutava o homem gemendo e fungando, até a irmãzinha começar a chorar. Além de tudo, aquele homem roubava seu lugar na cama quente da mãe.
Julinho não estuda, não faz nada. Sente uma fome constante e queria dormir num colchão só seu. A mãe o põe para fora de manhã cedo e manda que só volte à tardinha; e que tenha comido pela rua, porque em casa não há o que sustente a todos. Ele nunca se aventura muito longe de seu beco, perambula pelas redondezas. Sabe que alguém vai lhe dar o que comer, não sabe quem, não sabe onde; mas, como um rato, instintivamente, sabe que vai comer. Quase sempre está sozinho, mas ele não se importa; pelo menos, não terá de dividir com ninguém a comida que encontrar. Corre pela rua falando alto, alheio as pessoas e ao mundo a seu redor; corre montado num galho seco que é seu cavalo, de espada na mão, assim como o mocinho mascarado que viu num cartaz pregado na porta de uma loja de filmes. As outras crianças que encontra não lhe interessam, não faz caso delas. Nenhuma delas sequer olha para ele, nenhuma quer brincar com ele.
Volta para casa e já é quase noite. No meio do beco, em frente ao barraco, está parada uma Kombi branca com alguma coisa escrita na porta que ele não sabe ler. Dentro do barraco há um PM e umas outras pessoas. A mãe está chorando sentada a um canto. Ele acha graça na cara de pateta da mãe. Uma das moças vem falar com ele, diz que é de um tal Conselho Tutelar e que veio buscar a ele e aos irmãos para morarem numa outra casa, mas que a mãe não pode ir junto, que eles ficarão todos bem, que irão tomar banho e comer todos os dias. Julinho olha para a mãe apatetada e para o barraco imundo, volta-se e pergunta à moça se vai poder também dormir numa cama só sua. “Vai tomar banho, trocar de roupa, brincar, jantar e dormir numa cama bem limpinha”.
Julinho vai feliz dentro da Kombi, já não pensa mais na mãe que ficara chorando sozinha no barraco sem luz. Está aliviado, sorri satisfeito, até que enfim, vai poder dormir numa cama com colchão. Um colchão só seu,... só seu.

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