segunda-feira, 29 de julho de 2013

Vergonha

                               
(Mais uma palhinha de "A Empreitada")

                                Já não chove àquela hora. Pela janela aberta do último ônibus da noite, chega, às narinas de Osvaldo, o cheiro da terra molhada pela chuva da tarde. Chuva mansa, chuva boa, chuva de lavar telhado; chuva que, durante a tarde, caindo sobre as folhas de zinco da fábrica, ensurdeceu mais que o matraquear das máquinas. A cabeça pesa-lhe agora, mas não é sono. Sente peso no estômago e náusea, mas não lhe vem o gosto amargo da comida azeda da marmita requentada no seu almoço de operário. Os braços pesam como chumbo, mas não é pelo cansaço da hora extra. Aquela última hora extra, cumprida no silêncio aterrador da velha fábrica, já vazia de mãos e almas. Mas, suas mãos, naquela última hora, produziram a última peça e, só então, deixou esvaziar a alma. Pesam-lhe a cabeça e os braços com um peso de uma angústia, um medo, uma insegurança, uma dor, uma vergonha. Em casa, os dois filhos pequenos dormem aconchegados à mãe que espera. Não suportaram o sono na espera pelo pai. A casa pobre, tijolos sem reboco, um corpo com veias à mostra, infindável construção. Um lar feito aos poucos, com o pouco das sobras anuais. Hoje, Osvaldo leva dinheiro para casa. Dentro da bolsa de operário, ao lado da marmita vazia, descansa o envelope com o último pagamento. O ônibus, praticamente vazio, já chacoalha pelas ruas esburacadas de seu bairro, gente pobre e excluída das benesses da administração pública. Ao cheiro da terra molhada se junta o gosto de sal de uma lágrima. Lágrima furtiva, que nunca vem fácil aos olhos de quem tem vergonha. Osvaldo engole o gosto de sal quando se aproxima da sua parada mal iluminada; parada que projeta um trapézio de sombra sobre os buracos alagados da sua rua pobre. Como explicar aos filhos e à mulher? Amanhã ele já não trabalha mais. Dentro da bolsa de operário, ao lado da marmita vazia, descansa o envelope com o último pagamento. Envelope com um pouco de dinheiro a mais que o costumeiro; o dinheiro dos acertos finais do aviso prévio e o começo da angústia, do medo, da insegurança, da dor e da vergonha do desemprego.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Clipping - Jornal ABC - 14/07/2013

O recorte abaixo é de publicação do Jornal ABC do Rio Grande do Sul, de domingo, 14/07/2013, na coluna Sala de Leitura, de Jane Regina Mathias.


A Empreitada - (Ed. do autor, 123 p., 25 reais) Gerson Colombo. O livro reúne doze contos cuja linha mestra é "a de uma luta sem quartel, que o homem deve empreender para vencer suas más tendências, conhecendo a si mesmo, reforçando-se em suas  virtudes e combatendo em si os próprios vícios morais", conforme ressalta o autor na apresentação da obra. Os contos falam sobre luz e treva, a violência de supostos humanos sobre seres indefesos, a fraternidade em xeque, a velhice, os absurdos da convivência, o trabalho mal remunerado, a infância marginalizada, a sabedoria da natureza, o desgoverno oficial. Vergonha é um dos contos mais curtos, mas nem por isso deixa de ser um dos mais profundos. São palavras escassas, bem escolhidas, para relatar uma realidade cruel: a dor infinita de um pai de família que perde o emprego. Em Cenas Curtas Colombo fala sobre os absurdos encontros e diálogos, entre pessoas que, lamentavelmente, são bem reais. São situações estranhas a que todos se sujeitam num mundo como o atual, no qual ninguém parece querer ouvir ou entender o que o outro diz.


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